Literatura e cinema ao gosto do cliente.

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#01 – Fotos

Um pouco de toda uma loucura: entregar trabalho, chegar na hora certa, trabalhar como um louco e descobrir que calçou meias erradas.

Dr. Sabichão

O Dr. Sabichão é um maluco cientista e professor de Química que resolve falar sobre perigosas combinações químicas de materiais do uso doméstico.

Dr. Sabichão é uma animação criada por mim e pela minha irmã Giovana Marchesin. Utilizamos a técnica conhecida como Stop Motion.

Ligação de engano

A vida que Tomás levava era muito simples, acordava muito cedo, tomava seu café da manhã e logo seguia o caminho para o trabalho num ônibus circular.

Certo dia, Tomás acordou cedo como sempre, foi à cozinha preparar o café e depois seguiu para o trabalho. Quando chegou ao trabalho, teve a notícia de que um de seus clientes estava com problema com um dos produtos que havia comprado: assentos sanitário.

‑ Mas esse assento não cabe no meu vaso sanitário! – dizia o cliente.

‑ Deixe-me ver. – pediu Tomás ao homem.

Tomás avaliou o assento sanitário, parecia tudo em ordem.

‑ Deve ser o modelo do assento que está causando problema, você trouxe o molde do seu vaso sanitário?

‑ Não.

‑ Então vem comigo, vou te mostrar os modelos de vaso sanitário que temos aqui na loja e você tenta reconhecer o que se parece com o da sua casa.

Os dois homens foram até um canto da loja onde havia uma enorme exposição de vasos sanitários, havia de todo tipo, pequenos, grandes, redondos, quadrados e triangulares. Tomás disse ao homem:

‑ Algum desses assentos parece com o do senhor?

O homem olhou para os assentos e depois olhou para Tomás.

‑ O senhor pode me dar licença? – disse o homem. – Não quero que o senhor invada a minha privacidade.

Tomás balançou a cabeça de cima a baixo bem lentamente, concordando com o homem e saiu para um canto. Resolveu esperar o cliente numa sessão diferente, o setor de telefonia. Havia poucas pessoas ali, só um funcionário da loja que trocava algumas etiquetas de preços nas gôndolas. Logo ele desapareceu de vista e Tomás perdeu seu tempo olhando os aparelhos telefônicos que estavam expostos. Eram de todos os tipos, com dígitos comuns, em formas de botão, com dígitos em forma de visor digital, alguns eram apenas fones de ouvido com microfone e outros eram estranhos, pareciam apenas uma caneta fina com espaço para falar e ouvir, mas um em especial chamou a atenção de Tomás, um telefone vermelho, com aparência muito antiga, os números de discagem eram daqueles que giravam. Tomás ficou um tempo admirando o telefone, pensando no por que haveria um telefone desses para vender ali se eles haviam saído de linha há muito tempo. Olhou pensativo para o telefone.

‑ Bem que eu podia ter um desses…

Tomás foi tirado de seu transe pelo cliente que ainda segurava o assento sanitário nas mãos.

‑ Eu acho que encontrei o vaso parecido com o que tenho em casa.

‑ Então me mostre.

‑ Não, eu quero privacidade.

‑ Mas como eu vou poder ajudar o senhor se eu não sei qual é o vaso sanitário que o senhor tem em casa?

O homem ficou pensativo e, depois de um tempo, decidiu levar Tomás até onde se encontrava um vaso sanitário retangular e grande.

Tomás não conseguiu segurar uma risada, o vaso sanitário que o homem lhe indicou era muito extravagante, mas nem foi o formato do vaso que fez ele rir, mas o assento que o homem havia escolhido no dia anterior para encaixar no seu vaso sanitário.

‑ Mas é claro que o senhor não iria conseguir encaixar esse assento no vaso sanitário do senhor, ele é redondo e o vaso que o senhor tem em casa é retangular, sem falar que é muito maior do que o assento que o senhor escolheu.

O cliente pareceu deveras ofendido com as palavras de Tomás, resmungou baixo e mudou de cara no mesmo instante.

‑ Então me mostre um assento que se encaixe no meu vaso sanitário! – falou o cliente secamente.

Tomás mostrou o assento ao homem, ele pegou um assento de uma cor quase verde florescente e foi até o caixa. Tomás ainda escutou o cliente dizer entre dentes:

‑ Eu vou denunciar esse funcionário para o gerente da loja, onde já se viu, além de querer saber da vida íntima das pessoas ainda faz gozação!

“É, o dia vai ser difícil”, pensou Tomás.

E foi mesmo, aquele não foi o único problema que Tomás teve com clientes no dia, teve um que teimava que queria um assento sanitário cinza, mas apontava toda hora para um azul e, quando Tomás aceitou que o azul era cinza, a pessoa virou para ele e teimou que ele o havia induzido a comprar o azul só porque era mais caro.

Por volta das seis horas da tarde, Tomás se livrou do último cliente e foi tirar o uniforme. Quando seguia para a saída da loja, passou no corredor em que estava o telefone vermelho. Parou novamente quase que hipnotizado, com os olhos namorando o telefone. Ele adorava tudo o que parecia antigo.

Ele abriu a carteira e viu quanto que tinha de dinheiro, não era muito, mas era o suficiente para comprar o telefone. Ele pegou o aparelho e o levou para o caixa.

‑ Uau, faz tempo que esse telefone está parado lá na prateleira – disse a garota que estava no caixa da loja ‑, ninguém nunca quis comprar ele. Vou te dar o desconto de funcionário, está bem?

Tomás saiu contente da laja e não se preocupou com o caminho que ainda teria que percorrer até sua casa num ônibus lotado de pessoas exaustas com mais um dia de trabalho. Ficou olhando o telefone todo contente como uma criança que acabara de ganhar um brinquedo que queria muito.

Quando chegou em casa, Tomás tratou logo de substituir o telefone da sala pelo que acabara de comprar. Instalou o novo telefone numa mesinha perto do aparelho televisor, e lá deixou o aparelho na expectativa de que alguém ligasse e, assim, ele poderia testá-lo.

Foi para a cozinha, preparou o jantar, mas não aguentava esperar, hora ou outra corria para perto do telefone e o tirava do gancho para ver se funcionava, o telefone parecia em perfeito estado.

‑ Para quem eu posso ligar? – se perguntou Tomás, mas não lhe vinha ninguém na cabeça.

Deixou o telefone de lado e foi jantar.

Quando já ia deitar e acreditava que ninguém mais o ligaria naquele dia, escutou o som vindo da sala. O telefone tocava como um despertador antigo desengonçado, fazia o som de um sino que tocava descompassadamente. Tomás correu para atender o telefone antes que a pessoa desistisse de continuar chamando.

‑ Alô – disse ele.

‑ Jefersom? – perguntou a voz no outro lado do telefone.

‑ Não, aqui é Tomás.

‑ Ah, me desculpe, foi engano.

Desligou o telefone.

Tomás ficou feliz. Mesmo sendo uma ligação de engano, ele pode provar que o telefone funcionava e muito bem, por sinal. Ficou todo contente e foi se deitar com um sorriso no rosto.

No dia seguinte, Tomás chegou ainda mais tarde do trabalho e deu menos importância ao aparelho vermelho na sala. Já estava provado que funcionava e agora o via só como um adorno ao cômodo.

Novamente, quando ele ia dormir, o telefone tocou e Tomás correu a atendê-lo.

‑ Alô. – disse mais uma vez ele ao telefone vermelho.

‑ Alô, Tomás?

‑ Sim, quem é?

‑ Sou a pessoa que te ligou ontem, estava procurando Jefersom, acabei ligando para você por engano.

‑ Ah, sim.

‑ Eu gostaria de conversar um pouco com você.

‑ Sobre o quê?

‑ Sobre a sua vida.

Tomás soltou uma leve gargalhada e colocou a mão no gancho do telefone. Esqueceu logo do aparelho, pensou só no que queria aquele homem saber da sua vida. Tomás não era bobo, sabia que tinha muita gente que ligava fingindo ser engano só para descobrir dados da vida pessoal, para depois usar esses dados em fraudes ou assaltos.

Curioso, Tomás tirou a mão do gancho e escutou novamente, o homem ainda parecia estar do outro lado da linha. Ele escutou o silêncio na linha por um tempo.

‑ Tomás? – disse, enfim, a pessoa no outro lado da linha.

‑ O que você quer?!

‑ Quero saber um pouco sobre a sua vida.

‑ O que você quer?! Quer saber os meus dados para poder me roubar, é isso?!

‑ Não, só quero conversar.

Tomás foi impaciente e desligou novamente o telefone, dessa vez batendo o fone com força no gancho.

Foi se deitar, estava cansado e teria outro longo dia de trabalho no dia seguinte. Mas quem disse que ele conseguiria dormir? Não parava de pensar no telefonema que recebera. Girou de um lado para o outro na cama até que não aguentou mais e voltou à sala. Tirou o telefone do gancho e o levou ao ouvido. O silêncio dominava.

‑ Tomás?

Assustou-se o homem sentado na poltrona da sala.

‑ Você ainda está aí? – perguntou assustado Tomás.

‑ Sim, quem liga é quem pode realmente desligar a ligação.

‑ Desliga essa porcaria de telefone! Eu vou ligar para a polícia! – gritou Tomás e bateu com força o fone no gancho. Um cachorro começou a latir na rua ao lado de fora da casa.

Ele foi à cozinha, não conseguiria mais dormir. Andou de um lado para o outro pensativo, preocupado. “O que é que aquele homem quer comigo?”, pensou enquanto fervia água para um chá, “Se ele não desligar o telefone eu nem ao menos poderei ligar para a polícia!”.

Não deu outra e ele foi novamente para o telefone.

‑ Você ainda está ai?! – perguntou Tomás com rispidez.

‑ Estou sim.

Mais uma vez desligou o aparelho telefônico.

Quando o sol estava raiando, Tomás foi se preparar par ir ao trabalho. Estava exausto por não ter dormido a noite.

‑ Eu não vou mais atender esse telefone! Que desgraça a minha ter comprado ele ontem!

No entanto, antes de sair para o trabalho foi verificar se o homem ainda estava na linha. “Ele não pode ter ficado a noite toda do outro lado me esperando”, pensou. Quando levou mais uma vez o fone ao ouvido, escutou:

‑ Eu vou contar até três.

Instantaneamente depois das palavras, o rosto de Tomás ficou purpura e seu olhar ficou o infinito. Ele se sentou devagar na poltrona da sala e lá ficou com o telefone ao ouvido.

‑ Agora você vai sentir uma vontade enorme de me obedecer – continuou a voz ao telefone. – seus olhos estão pesados, você se sente pesado, mas sabe que é feito de pedra como uma estatua e não deixará o corpo mexer um só centímetro. Agora teus olhos parecerão duas esferas de vidro e não se mexerão mais – fez-se um silêncio momentâneo do outro lado da linha. – Agora, quando eu contar até três, você voltará ao normal. Um.

Repentinamente escutou-se uma outra voz do outro lado do telefone:

‑ O que você está fazendo?! – era uma voz de mulher e parecia muito brava.

E, repentinamente, escutou-se uma forte ruído seco do outro lado da linha e a ligação caiu.

Tomás ficou paralisado segurando o fone ao ouvido. O som de ligação cortada ressoava constante em seu tímpano. Ele não se mexeu. Não moveu um único músculo. O que será que a pessoa do outro lado da linha pretendia fazer? Isso ninguém sabe, mas se, em algum momento, desejou tirá-lo do transe, nunca mais conseguiria, pois o telefone fora do gancho, na mão de Tomás, não permitiria mais novas ligações.

Ninguém descobriu o homem parado na poltrona com o telefone na mão. No trabalho, não ligaram para as suas faltas, acreditaram apenas que ele já estava de saco cheio de vender assentos sanitários e que resolveu não aparecer mais por lá. E ninguém foi atrás dele.

Ele vegetou imóvel por muito tempo, a vida esvaiu e depois ele existiu, ainda, por muito mais tempo, feito uma estátua de músculos eternizada. Tomás ficou imóvel naquela sala até que uma população muito mais evoluída o encontrou durante uma escavação para entender o estilo de vida dos antigos moradores do planeta. Tomás virou atração e todos descobriram, assim, o modo como os antigos se comunicavam

Da morte, ele tinha medo

Qual era mesmo o nome dele?

Poxa, vida, eu não me lembro. Mas me lembro de uma conversa que tivemos no primeiro e último dia em que nos vimos.

Andava eu, todo enraivecido por ter cortado meu dedão do pé numa pedra lascada de uma calçada qualquer. Sem muito motivo, talvez com medo da cicatriz que poderia ficar e por ver tanto sangue saindo do meu corpo, corri para o hospital. O médico disse que eu teria que dar alguns pontos. Fui enviado para um pequeno quarto, onde eu esperaria a minha vez de concertar o estrago no meu dedo.

Segurando o meu dedão com um pano todo ensangüentado, gemia de dor. E, não fosse um pequeno sussurro, não perceberia a presença de outra pessoa no quarto. Era um homem de certa idade deitado numa maca, coberto por um lençol branco. Havia um vidro pendurado ao lado da maca com uma pequena mangueira que levava o líquido até o braço do homem.

Aquele homem sussurrou mais uma vez e eu percebi que ele olhava para mim.

Falava algo que eu não entendi, mas suas mãos mostraram o significado de suas palavras. Ele movimentava as mãos para que eu me aproximasse.

Talvez a dor do pé não tenha desaparecido, mas, por um instante, eu deixei de pensar nela e comecei a refletir no que aquele homem queria. Demorei alguns instantes, mas, mancando, com o dedo do pé enrolado no pedaço de pano avermelhado, me aproximei da maca e me sentei numa poltrona postada ao lado dela.

“Rapaz, eu tenho medo da morte”, sussurrou o homem. A voz era tão rouca e fraca, o rosto exibia uma longa seção de sofrimento. O que aquele homem tinha? Por que ele estava me falando aquilo?

“Não tenha medo dela, ela faz parte da vida”, disse eu depois de um tempo.

“Eu sei”, disse ele com muito esforço recostando a nuca no travesseiro e erguendo o olhar para o teto. “Todos me falam isso, mas agora eu tenho medo da morte”. O olhar do senhor se perdeu por um instante. “Sabe, meu filho, todo homem que nasceu tem que morrer, mas todos eles têm que ter o direito de viver… agora eu sei…”, a voz do homem se perdeu em meio a algumas tosses. “Eu queria ter vivido”.

“Mas o senhor não viveu?”, não me lembro com que intenção, mas perguntei isso quando o homem abriu uma pausa.

“O que você entende por vida, meu filho?”, os olhos dele me interrogavam, não soube de imediato se deveria responder à pergunta. Antes que eu pudesse decidir em respondê-la, ele continuou: “A minha vida foi marcada por bebedeiras, muitas mulheres, muitas festas, algumas drogas… isso não parece ser bom? Só farra.”

Talvez, nesse momento, meu dedo ainda sangrasse, mas eu nem mais me lembrava dele.

“A verdade é que não é bom”, continuou ele. “Sabe de uma coisa, eu nunca tive um filho. Eu nunca tive uma mulher que tenha me amado por mais de uma noite. Eu nunca tive minha família, eu nunca tive amigos… eles só apareciam nos momentos de festa, mas nos momentos a sós, eu nunca os tive”. O dedo indicador do homem deu uma leve erguida e se movimentou como se me mostrasse a extensão do quarto. “Você vê alguém aqui além de nós dois? É… somos só nós e você nem mesmo é meu amigo.”

De repente um longo silêncio se fez, não sei ao certo o que pensei nesse momento, mas ele foi quebrado pelo próprio homem:

“Me disseram que quando tudo fica silencioso, quando as pessoas não conseguem falar, é porque um anjo acaba de passar entre elas”, a voz do homem ficou mais embargada e seus olhos ficaram vermelhos. “Acho que isso é um sinal. Eles vêm me buscar”. Uma única lágrima escorreu pela face dele e depois seus olhos secaram novamente. “Eu tenho medo da morte”, disse ele por fim. “Eu tenho medo da morte porque eu queria viver, eu queria ter uma vida que não fosse aquela que eu tive… e eu sei que não vou mais ter essa oportunidade.”

Os olhos daquele homem fitaram mais uma vez o teto e, um momento depois, se fecharam lentamente.

“Deixe-me descansar agora.”

O observei deitado naquela maca. Ele era tão frágil. Como será que tinha sido sua vida? Será que ele merecia morrer?

Antes que meus pensamentos voassem para outras questões, a porta do quarto de espera se abriu e uma enfermeira entrou.

“Márcio Arroyo”, disse ela. “Pode me acompanhar, por favor?”

Mancando, mas sem dar importância alguma ao corte no meu dedo, caminhei para a saída. Mas, antes de sair pela porta, olhei uma última vez para o senhor na maca, os olhos dele fitavam os meus tão densamente que pareciam entrar na minha alma.

Dessa vez as palavras dele soaram com força suficiente para chegar aos meus ouvidos claramente: “Viva, meu filho”.

Saí da sala.

Antes de entrar na sala para micro-cirurgias, estaquei no lugar e, segurando o braço da enfermeira, lhe perguntei:

“O que há com aquele homem?”

“Bem, ele está com um grave câncer… é bem provável que ele não passe dessa noite.”

Realmente fiquei impressionado com o modo como a enfermeira falou, pareceu não transpor nenhuma emoção de tristeza, mas decidi não questioná-la sobre isso.

Não durei muito tempo na sala para cirurgias pequenas e já estava novamente no corredor do hospital com o meu dedão do pé agora com os devidos curativos. Quando passei perto da porta da sala de espera, escutei um dos médicos falando para outro ao lado do homem da maca, que agora dormia: “Realmente esse homem não merece viver, bem feito para ele”.

O que posso falar? Tudo isso mexeu realmente comigo. O que tinha feito aquele homem para as pessoas falarem assim dele? Alguns dias depois eu descobri, quando, de manhã, peguei o jornal e vi estampada numa das páginas do interior do jornal, a foto do homem. Era uma foto antiga, mostrava seu rosto, mais novo, mais encorpado, quase não era possível relacionar o homem do hospital com o homem naquela fotografia, a não ser por alguns traços que deixavam claro que era a mesma pessoa nas duas fotos. A matéria falava sobre a morte do homem que havia matado várias pessoas, a maioria delas mulheres. Há muito ele era procurado pela polícia, mas só foi realmente pego quando a doença o levou para a enfermaria de um hospital.

Imediatamente me questionei sobre como aquele homem pôde falar que todos têm o direito de viver, se ele matou tantas pessoas. Talvez aquilo fosse arrependimento.

Por um tempo quis esquecer o meu encontro com o tal assassino em pleno leito de morte, mas a última frase que escutei da boca daquele homem não me deixou livre do meu mais terrível questionamento.

“O que será que é viver?”

Reflexões de um assassino

Entrei no meu apartamento aquela noite. Estava tudo escuro. Não acendi as lâmpadas para não sujar a parede com o sangue que manchava as minhas mãos. No escuro, o sangue não é vermelho, ele é negro. A janela entreaberta deixava entrar um pouco de luz naquele apartamento… era tudo o que eu precisava para começar a refletir, mas eu não queria refletir. Fui ao banheiro para tirar aquilo de mim, aquele ácido que corria nas minhas mãos, aquele cheiro que impregnava as minhas narinas, aquele cheiro de metal enferrujado…
A porta do banheiro estava semi-aberta, o azulejo acinzentado refletia a luz da janelinha do box. A pia era branca, mas não naquele instante. Minhas mãos lambuzaram a torneira e a água fluiu e eu enfiei minhas mãos debaixo dela. Esfreguei uma na outra com raiva até quase arrancar a minha própria pele.
Fechei a torneira e, com a toalha, a enxuguei. Aquela toalha estava suja, a quanto tempo eu não a lavava? Aquele banheiro devia estar todo sujo, mas eu não enxergava, pois estava tudo escuro.
Na sala, sentei no sofá, a sombra da cortina balançando com o vento guiavam os meus olhos de um lado para o outro, mas minha mente nada via. Por que tinha que ser assim? Não sei. Eu não quis saber aquele dia. Eu só queria fechar os olhos e desaparecer.
Então eu levante e fui até o meu quarto. O chão de taco rangia a cada passo que eu dava. O quarto estava iluminado pela luz da cidade. A cama ainda estava arrumada. Fui até ela, sentei. Deitei e olhei o teto. Por um minuto inteiro fiquei perdido nos movimentos das sombras formadas pelos faróis dos carros que passavam nas ruas lá embaixo. Eu só queria desaparecer. Fechei os olhos.
Toc-toc.
“Ah! Não! São eles!” Foi tudo o que pensei. E deixei os meus olhos fechados.

A morte da lesma

Quando a gente encontra uma lesma morta, é um ótimo momento para parar para pensar. Aliás, não é todo dia que damos de cara com uma lesma morta.
Hoje foi o dia em que encontrei a lesma morta.
Tudo se deu de um modo simples: estava, eu, no banheiro, lavando as mãos depois de escovar os dentes, pensava nas espinhas despontando no meu rosto enquanto me olhava no espelho… Não, não foi no banheiro que deparei com a lesma, foi no meu quarto, citei o banheiro, porque o ato de lavar as mãos realmente faz sentido para minha narrativa. Logo depois que saí do banheiro e fui para o meu quarto, deparei com algo no chão, era algo pequeno, comprido e preto. Como já era noite, a luz acesa do meu quarto não iluminava tão bem aquilo no chão. Pensei logo que aquilo fosse um pedaço de plástico preto da minha mochila que está despedaçando, mas não era. Sabe porque concluí que não era? Porque chutei-o com o dedão do pé e o treco que eu chutei era algo duro que estava grudado no chão. Com o chute do dedão, ele descolou. Se não era um pedaço de plástico da minha mochila despedaçada, o que poderia ser? É claro que não pensei numa lesma. Pensei que fosse um pequeno graveto. Mas como um graveto estaria colado no chão daquele jeito? Então meus pensamentos logo voaram para a seguinte pergunta: Será que tem um rato no meu quarto? Estava lembrando de alguns dias atrás, quando encontrei fezes de rato (ou seria de lagarto?) no meu quarto. Pensando em rato, meu pensamento voou para anos atrás, quando, no lugar de fezes, encontrei um rato arruaceiro no meu quarto. Mas, também, aquela coisa estranha no chão do meu quarto poderia ser fezes de lagarto. Será que algum lagarto entrou no meu quarto? Pode até ser estranho, mas no forro da minha casa não moram morcegos, mas, sim, lagartos… e eles ficam enormes! Quase sempre um se aventura a entrar em casa, escorregando com suas garras afiadas pelo azulejo. Pensando nos lagartos, olhei para o teto, talvez houvesse um buraco ali para o lagarto não ter precisado entrar no meu quarto, o buraco poderia ser a fossa da casa dos lagartos. Mas não havia buraco nenhum. Então eu decidi aproximar os olhos daquilo ali no chão. Agora entra a importância das minhas mãos lavadas. Eu não queria encostá-las no chão, cheio de cabelo, pó e outras coisas repugnantes; muito menos naquele treco desgrenhado. De joelhos eu peguei uma régua de um cursinho que estudei e comecei a cutucar o nosso objeto, era duro, estranho, parecia torrado, mas não como uma torrada, como uma pessoa feita carvão torrado, já viu uma? Eu não, mas já vi um cachorro torrado feito carvão torrado. Como eu concluí que era uma lesma feito um cachorro torrado feito um carvão torrado? Eu vi que tinha duas anteninhas onde não parecia ser o bumbum de uma lesma, e também virei ela de barriga para cima e vi que parecia a barriga de uma lesma (como se eu já tivesse visto muitas barrigas de lesma). E onde ela estava grudada ficou uma marca de gosma seca dela.
A morte da lesma realmente faz a gente pensar. Como é que pode aquele ser apodrecer ali, no centro do meu quarto, de modo tão esquisito, a ponto de transformar-se em cocô de rato? (Acha que fezes fica melhor)? Quanto ela andou? Provavelmente muito tempo, só para chegar no meio do meu quarto deve ter levado pelo menos meio dia, não que meu quarto seja grande, mas porque a lesma era pequena e lerda. Não sei se já viu uma lesma andando, mas a gente só sabe que ela está andando porque fica uma meleca atrás dela, as lesmas são muito lerdas. Ela não deve ter vindo de muito longe, mas, se ela veio do meu quintal ou de qualquer outro lugar da casa, deve ter sido muito longe para ela, para, simplesmente, parar no meio do meu quarto e morrer e virar uma coisa preta e dura! Será que ela tinha algum lugar para ir, algum destino? Ou será que ela estava andando sem rumo? Será que as lesmas tem algum lugar para irem? Acho que elas são seres que nascem apenas para andar para lugar nenhum.
Pobre daquela lesma, com a régua eu a peguei e a joguei na privada do banheiro, não dei descarga para não desperdiçar água a toa, mas agora ela jaz perdida nas profundezas das águas imóveis da minha privada. O triste destino da lesma: ir para o ralo depois de uma mijada.